Monday, October 06, 2014

Uma sepultura para o senhor abutre, se faz favor!

«No Crac dos Cavaleiros de Rodes, cujas ruínas se erguem num alcantilado perto de Tripoli, existe um túmulo anónimo que tem a seguinte inscrição: «Não era aqui». Não há dia em que não medite nestas palavras. São tão claras e, ao mesmo tempo, encerram todo o mistério que nos é dado suportar.

«(…) Com efeito, atracámos hoje para enterrar o corpo que inchara monstruosamente e deixava um rasto de fedor que atraiu uma nuvem de abutres. Por cima dos suportes do toldo da popa instalara-se já o rei do bando, um formoso abutre de brilhante azeviche, com gorjeira cor de laranja e opulenta coroa de plumas rosadas. Pestanejava deixando cair uma membrana azul celeste com a regularidade de um obturador fotográfico. Sabíamos que enquanto ele não desse a primeira bicada no cadáver os outros não se aproximariam. Quando abríamos a cova, no limite entre a praia e a selva, olhava-nos do seu posto de atalaia com uma dignidade não isenta de certo desprezo. Há que reconhecer que a beleza do majestoso animal se impunha a ponto de a sua presença dar ao apressado funeral um ar heráldico, uma altivez militar de harmonia com o silêncio do lugar, interrompido apenas pelo embate da corrente contra o fundo chato da barca.» - Alvaro Mutis «in» A Neve do Almirante (Diário do Gajeiro).

Mas quis o destino que o rei de tanto se fixar naquela sepultura entrasse nela e acabasse por lá ficar pregado. Não se admirem: algo idêntico já foi relatado num filme de Akira Kurosawa.



Quem hoje visitar o lugar - e estiver atento – poderá ainda ver, como foi dito, o “pestanejar” azul celeste do rei...


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(1. Alvaro Mutis «in» A Neve do Almirante (Diário do Gajeiro): «Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero» - Wikipedia; 2. «O Abutre» - «in» Blog Aves de Rapina e uma reflexão: como o Xurandó relatado n’A Neve do Almirante é um rio imaginário talvez este abutre também o seja. Fiquemo-nos, portanto, com um Quebra-ossos, do Velho Mundo, a viver no Novo Mundo. Os abutres – no caso, condores e urubus – decerto não levarão a mal; 3. O filme de Akira Kurosawa: no episódio Os corvos, de Sonhei estes sonhos, o jovem Kurosawa «entra nos quadros de Van Gogh, corre à procura do pintor até vê-lo desaparecer no Campo de trigo com corvos» - «in» «O cinema no túnel de Van Gogh» - Escrever Cinema; 4. «O cheiro dos grifos» - neste «blog»; 5. Animação a partir de imagens disponíveis na Web)

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